Kafka e a boneca viajante

O que você faria se encontrasse uma criança sozinha chorando? E o que faria se, depois de fazer as perguntas básicas como “você está perdida?”, “alguém te machucou?” e “Onde estão seus pais?” você descobrisse que aquele choro era por causa de uma boneca que havia sumido.


Essas são as primeiras reflexões que o autor espanhol Jordi Sierra i Fabra nos leva a fazer em Kafka e a boneca viajante. E foi nessa situação que o conhecido escritor Franz Kafka se viu envolvido em 1923 em um parque de Berlim. Voltando para casa o autor de A Metamorfose encontra a pequena Elsi chorando. Depois de fazer as perguntas básicas Kafka descobre que aquelas lágrimas tão sinceras e dolorosas eram porque a pequena havia perdido sua boneca. Sem desdenhar do sofrimento de Elsi, Kafka faz as perguntas que “um policial faria diante de um crime”. Mas depois delas o que fazer para acalmar a pequena? Dizer ‘sinto muito’ seria menosprezar uma dor tão profunda. Então, Kafka respira e... melhor eu escrever um pequeno trecho da história para vocês verem a solução que Kafka arruma para o problema:

“Porque a dor infantil é tão poderosa?

A situação era real. A relação de uma menina com sua boneca é das mais fortes do universo. Uma força descomunal movida por uma tremenda energia.

E então, de repente, Franz Kafka se acalmou.

A solução era tão simples...

Pelo menos para sua mente de escritor.

- Espere um pouco, que bobagem a minha! Qual o nome da sua boneca?

-Brígida.

- Brígida? Claro! – soltou uma risada das mais convincentes. – É ela, lógico! Desculpe, não me lembrava do nome! Às vezes sou tão avoado! Com tanto trabalho!

A menina arregalou os olhos.- Sua boneca não se perdeu – disse Franz Kafka alegremente. – Ela foi viajar!”

Nesse momento Kafka se apresenta como um carteiro de bonecas. Estes profissionais, explica ele, diferente dos carteiros tradicionais, entregam as cartas diretamente nas mãos do destinatário. Portanto, a partir do dia seguinte a pequena Elsi, sem saber que quem escrevia era o próprio Kafka, começa a receber as cartas com as aventuras de Brígida pelo mundo diretamente. Dora Dymant, esposa de Kafka, conta que “naquele dia, ele entrou no mesmo estado de tensão nervosa que o tomava cada vez que se sentava a sua escrivaninha, fosse para escrever uma carta ou um postal”. Cada carta foi escrita com a mesma devoção como teria escrito um de seus romances ou contos.

O livro Kafka e a boneca viajante é uma ficção baseada em uma história contada por Franz Kafka e confirmada por sua companheira Dora Dymant. Apesar desse encontro ter acontecido, poucas informações foram achadas para além do que Kafka e sua esposa contaram. O nome da menina e da boneca não foram descobertos. Elsi e Brígida são nomes fictícios. Entrevistas com vizinhos e anúncios em jornais não ajudaram nem mesmo estudiosos de Kafka como Klaus Wagenbach, a encontrar mais informações. Nada foi descoberto sobre a menina e as cartas que ela recebeu também nunca apareceram. As cartas reais são uma história de Kafka para uma única pessoa. Já as cartas que aparecem no livro foram recriadas por Jordi que pede ao leitor licença para a transgressão de “inventar essas cartas, terminar a história, dar-lhe um final imaginário. Pode ter sido este ou outro qualquer, não acho que seja importante. O que aconteceu é tão belo em si mesmo que o resto carece de importância. A única coisa evidente é que aquelas cartas devem ter sido muito melhores e mais lúcidas que as recriadas por mim”.

Foram cerca de três semanas escrevendo diariamente as correspondências que chegariam a pequena Elsi. Três semanas que de fato existiram.

As 127 páginas dessa bela obra fazem o leitor viajar em uma linda história de amizade, sonhos e gratidão. Tudo isso mostrado de maneira poética como quando Brígida, ou Kafka, escreve a décima sétima carta a Elsi. Ela diz: “Não sei se você percebeu, Elsi, mas com esta já são dezessete cartas que mandei de todos os lugares em que estive. Quando olho para trás, vejo que foi como um sonho, não acha? Imagino você com seu amigo carteiro, sentada num banco do parque Steglitz, deixando sua imaginação voar para me acompanhar em minhas peripécias em busca de meus sonhos. Acontece que os sonhos são a base da vida. Sem sonhos, somos apenas corpos perdidos vagando na rotina. Nunca se esqueça de que sou livre porque você foi livre e me transmitiu essa felicidade”.

Ao longo da obra também descobrimos que Kafka não queria que suas obras fossem publicadas postumamente e pediu para que um amigo, Max Brod, cuidasse disso destruindo tudo que havia escrito (o que ele não fez). Em Kafka e a boneca viajante há a preocupação de que as cartas serão a única obra que não poderá ser destruída e, portanto poderia ser publicada. Kafka faleceu em um sanatório perto de Viena em 1924, aos 41 anos de idade e deixou obras como A metamorfose e O processo (esta última publicada em 1925, portanto, depois de sua morte).

A ideia da escrita do livro Kafka e a boneca viajante, conta Jordi, surgiu depois que ele leu um artigo no jornal El País, em maio de 2004 que contava aquilo que já se sabia sobre a história. No Brasil a obra foi publicada em 2008 pela Editora Martins Fontes e em 2007 recebeu do Ministério da Cultura da Espanha o Premio Nacional de Literatura Infantil e Juvenil.

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